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A impenhorabilidade dos bens de hospitais sem fins lucrativos

Entenda como a Lei n. 14.334/22 expandiu o entendimento sobre a impenhorabilidade dos bens de hospitais para proteger entidades beneficentes.

Seja para os argutos estudiosos do processo civil, seja para os leigos talvez amedrontados diante de uma possível dívida, o tema da impenhorabilidade dos bens de hospitais possui relevância prática inquestionável. Não por menos, já que a limitação dos atos executivos sobre o patrimônio constitui a fronteira entre um direito meramente declarado e a satisfação da justiça.

A responsabilidade patrimonial

 Ao retratar o Século XIV em “O Mercador de Veneza”, Shakespeare nos convida a perceber a ausência de limites na liberdade negocial privada, sobretudo na extensão da responsabilidade civil. Na peça, Antônio pede dinheiro emprestado a Shylock. Contudo, diante da falta de crédito ou bens para salvaguardar a obrigação, o agiota exige a própria carne do devedor como garantia de pagamento.

Não é necessário revelar o restante da obra para se notar a vileza do contrato, bem como a incompatibilidade da garantia em face à racionalidade moderna. No direito contemporâneo, o pagamento de dívida civil com o próprio corpo não encontra fundamento.

Essa sensação de torpeza decorre do princípio da responsabilidade patrimonial, já bastante arraigada na sociedade. Nessa lógica, o devedor responde com todos os seus bens, presentes e futuros, para o cumprimento de obrigações (art. 789, CPC). Assim, o inadimplente responderá pelo descumprimento daquilo a que se vinculou, mas apenas na extensão de seu patrimônio.

Em outras palavras, nos tempos atuais, Antônio jamais se veria obrigado a pagar Shylock com partes de seu próprio corpo. Como resultado, nos tempos atuais, talvez não houvesse contrato (e nem o conto de Shakespeare).

Os limites da responsabilidade patrimonial

Sucede que o mero recorte patrimonial não foi suficiente para efetivar a justiça e retirar a indignidade de certas relações civis desiguais.

Ainda que a entrega da propriedade seja notoriamente melhor que disposição da vida, da liberdade, ou da integridade física, não se ignora a relevância que determinados bens materiais possuem para a vida digna.

Assim, com exceção daquilo que é luxuoso, os bens que o guarnecem o imóvel para a moradia, o vestuário, o próprio salário, os livros ou equipamentos necessários ao trabalho, além da pequena poupança, são exemplos de bens considerados essenciais para a vida digna. Justamente por isso, o art. 833 do Código de Processo Civil os considerou impenhoráveis.

A impenhorabilidade é, justamente, a qualidade do bem que o retira da relação obrigacional-civil. O bem impenhorável não é objeto da eventual responsabilidade decorrente do inadimplemento.

Mas não apenas os itens arrolados no art. 833 do CPC transmitem a impenhorabilidade aos bens. Além desse dispositivo, a Lei n. 8.009/1990 afastou a responsabilidade patrimonial sobre o denominado bem de família: o imóvel residencial próprio da entidade familiar – aí incluídas as pessoas solteiras, viúvas e separadas,[1] em observância à Súmula 364/STJ.[2]

Igualmente, a Lei n. 14.334/2022 inovou no ordenamento jurídico e trouxe mais uma espécie de impenhorabilidade: aquela sobre os bens de hospitais sem fins lucrativos.

A impenhorabilidade de bens de hospitais filantrópicos e Santas Casas de Misericórdia

Publicada em 10 de maio de 2022, com entrada em vigor imediata, a Lei n. 14.334/2022 estabeleceu que os bens de hospitais e santas casas de misericórdia mantidos por entidades beneficentes certificadas são impenhoráveis.

Dessa forma, todos os imóveis, as benfeitorias, equipamentos profissionais e os móveis que os guarnecem não poderão servir de pagamento para qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária, administrativa ou criminal. Essa é a inteligência do art. 2º da referida lei.

Apesar de não constar de maneira expressa, a impenhorabilidade abarca também os automóveis necessários para a persecução da atividade hospitalar, sobretudo ambulâncias e UTIs móveis. A extensão da proteção vai de encontro à intenção do legislador, qual seja, fomentar serviços de saúde à população.

O mesmo espírito da lei, por outro lado, apresenta reservas em face à blindagem patrimonial: obras de arte e adornos suntuosos, ainda que disponíveis nas dependências do nosocômio, poderão integrar a execução.

Igualmente, segundo o art. 4º da Lei 14.334/2022, três espécies de execuções podem afastar a impenhorabilidade dos bens mencionados: (i) a execução civil movida para cobrar dívida do próprio bem, inclusive quando contraída para sua aquisição; (ii) a execução de garantia real – penhor, para bens móveis, e hipoteca, para bens imóveis; bem como (iii) a execução de natureza trabalhista para cobrança dos créditos de trabalhadores e suas contribuições previdenciárias respectivas.

Uma vez compreendida a extensão dos bens impenhoráveis, necessário compreender os requisitos práticos para a concessão da benesse.

Requisitos para impenhorabilidade de bens em hospitais

A leitura atenta do art. 2º da Lei 14.334/2022 permite concluir que nem todos os hospitais e Santas Casas de Misericórdias fazem jus à impenhorabilidade de seus bens. Pelo contrário, apenas os estabelecimentos mantidos ou administrados por entidades beneficentes certificadas poderão gozar da redoma executiva.

Em outras palavras, é necessário que a instituição seja titular do CEBAS – Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social na Área de Saúde – regulamentado pela Lei Complementar n. 187/2021.

Nesse sentido, tem-se que entidade beneficente é toda pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, que presta serviços nas áreas de assistência social, de saúde, ou de educação.

Relativamente às entidades atuantes no ramo de saúde, a obtenção da certificação depende, além de lisura contábil e aplicação integral dos lucros para desenvolvimento dos objetivos institucionais – elementos inerentes a toda entidade beneficente – é preciso que o hospital realize ao menos uma das seguintes atividades: (i) prestar serviços ao SUS; (ii) prestar serviços gratuitos; (iii) atuar na promoção à saúde; (iv) ser de reconhecida excelência e realizar projetos de apoio ao desenvolvimento institucional ao SUS.

Havendo a satisfação integral dos requisitos acima, a entidade interessada poderá apresentar seu requerimento de certificação ao SisCEBAS, plataforma de gerenciamento do CEBAS em nível federal, onde tramitará todo o procedimento até a expedição do documento público.

Resumidamente, portanto, apenas hospitais e Santas Casas de Misericórdias mantidos por entidade possuidores do CEBAS terão bens impenhoráveis.

Conclusão

A recente Lei n. 14.334/2022 expandiu as fronteiras da impenhorabilidade com um objetivo de proteger entidades beneficentes que prestam auxílio à população, sem fins lucrativos. Não são poucos os casos de Santas Casas que, por intercorrências externas, viram-se obrigados a fechar as portas e tiveram seus bens plenamente liquidados. Em tais casos, quem perde é a sociedade em detrimento de poucos credores.

Com a nova regra, o jogo muda.


[1] Sobre o tema, vide: VASCONCELOS, Rita. O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas: Súmula 364/STJ. In: ARRUDA ALVIM, Thereza (Coord.) Teses jurídicas dos tribunais superiores: direito civil III p. 463-493. São Paulo, Editora Revistas dos Tribunais, 2017.

[2] O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas

Sócio-fundador da Martinelli & Guimarães Advocacia. Head das áreas de contencioso cível, Imobiliário, Terceiro Setor e Relações Governamentais. Mestrando em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Membro do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano (NUPED).

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