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RETROATIVIDADE DA NOVA LIA: qual o debate atual no STJ?

Por Letícia Calaça

A Lei de Improbidade Administrativa (LIA) (Lei 14.230/2021) tem papel fundamental no combate à corrupção e à má gestão de recursos públicos no Brasil. Recentemente, foi apresentada uma nova versão da LIA, que traz importantes mudanças para o campo jurídico. Entretanto, a retroatividade da LIA em relação ao uso da análise de contas, em ações de improbidade administrativa, tem gerado inúmeras discussões.

Sobre o princípio da retroatividade

Embora a Constituição de 1988 não possua uma taxatividade de princípios no direito administrativo sancionador, há certo consenso quanto ao conteúdo dos princípios fundamentais, penais e administrativos.

Nessa senda, da mesma forma que se entende pela aplicação do princípio da proporcionalidade e razoabilidade quando tratamos de improbidade, defende-se a irretroatividade da norma, ainda que mais benéfica, uma vez que o bem jurídico ofendido não compreende a dignidade da pessoa humana.

Portanto, no direito administrativo sancionador, aplica-se a lei vigente à época do ilícito, mesmo que isso compreenda uma maior gravidade que a lei posterior à data dos fatos.[1]

O princípio da não retroatividade da norma.

Uma das principais razões para se sustentar a falta de efeito retroativo da nova LIA, no contexto da análise das denúncias de atos de improbidade administrativa, é o princípio da não retroatividade da norma, consagrado no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

Atualmente, inúmeras ações de improbidade administrativa ainda decorrem da análise de contas sobre fatos e situações ocorridos antes da entrada em vigor da nova LIA. Nesse cenário, a aplicação retroativa dos novos dispositivos da lei violaria o princípio da irretroatividade, criaria insegurança jurídica e violaria os direitos das partes envolvidas.

Este princípio dispõe que a lei não pode prejudicar retroativamente direitos outorgados, atos jurídicos completos ou situações consolidadas. Além disso, o efeito retroativo da nova LIA na análise de contas pode levar a um cenário de instabilidade e revisão de processos já julgados.

Outro ponto importante é que decisões tomadas com base em legislação anterior, seguindo os requisitos e critérios então estabelecidos, podem ser questionadas e anuladas pela aplicação retroativa da nova lei. Isso pode minar a confiança no sistema legal e colocar em risco a segurança das relações jurídicas, porque as partes envolvidas em improbidade administrativa devem cumprir as leis em vigor quando as ações foram julgadas.

Qual é a posição atual da maioria no STJ?

Ao se analisar os precedentes e decisões recentes do STJ, observa-se uma tendência de não aplicação retroativa do disposto na nova lei na análise dos relatórios de improbidade administrativa.

O Tribunal tem entendido que as alterações introduzidas pela nova lei não devem ser retroativas mas serão preservados os efeitos das normas que vigoravam à época da constatação das circunstâncias do julgamento. Tal posicionamento, no qual não aplica retroativamente os dispositivos da nova lei de improbidade administrativa ao uso da análise de contas, levanta algumas questões importantes que estão à baila nas recentes discussões das Turmas. Salvo melhor juízo, um dos debates com maior destaque sobre a temática repousa na 1ª Turma do STJ.

Qual o debate recente que está ocorrendo no STJ sobre o tema segundo o AResp?

Em agravo de recurso especial (AREsp 2.031.414), o ex-prefeito de Santana de Cataguases (MG), condenado por receber indevidamente uma quantia em despesas de viagens, restou envolvido no processo de ressarcimento aos cofres públicos. Entretanto, no recurso, houve alegação de que o processo seria nulo haja vista que as contas tinham sido aprovadas pela Câmara Municipal à época.

Por força da Lei 8.429/1992, o aval dos vereadores com relação as contas do prefeito não teriam qualquer influência. Contudo, em razão das alterações vigentes na Lei 14.230/21, as balizas que permeiam a situação foram contempladas em seu artigo 21, o qual prescreve que a aplicação de sanções independe do aval do órgão de controle interno, Tribunal ou Conselho de Contas.

Voltando ao debate, não há concordância entre a Turma. O Ministro Gurgel de Faria, bem como o Ministro Benedito Gonçalves, compreenderam por conceder provimento ao recurso partindo do pressuposto que na legislação foi estabelecido que se, porventura, as contas forem aprovadas tanto pela Câmara quanto pelo Tribunal de Contas, então, em princípio, não seria possível caracterizá-las como atos de improbidade.

Pensamento diverso é o da Ministra Regina Helena Costa, a qual entende pelo não alargamento indevido da retroatividade. Assim, consonante a percepção do Supremo Tribunal Federal no qual admite retroatividade apenas nos casos de ato culposo de improbidade sem trânsito em julgado não ajustando-se com a interpretação extensiva da nova LIA.

Na esteira do exposto, apesar da nova discussão que é de suma importância para o entendimento da conformidade da nova Lei de Improbidade Administrativa sobre o alargamento ou não da retroatividade da Lei, insta observar que a posição do Supremo Tribunal de Justiça é a de não aplicabilidade da retroação. Entendimento válido haja vista o disposto no art. 24 da LINDB, compassado com a observância da segurança jurídica e o princípio da irretroatividade que descansa na previsibilidade dos atos administrativos.  

É relevante destacar também o teor do artigo 2º, parágrafo XIII da Lei 9.784/99, que é aplicado de forma complementar aos processos administrativos regidos por legislação especial. Essa disposição estipula que a interpretação das normas administrativas deve ser conduzida de maneira a assegurar o cumprimento dos objetivos públicos aos quais se destinam, vedando a retroatividade de uma nova interpretação.

Dessa forma, quando ocorre uma alteração na compreensão adotada pela administração pública, com a aplicação retroativa de uma nova interpretação que já se consolidou ao longo dos anos, sem qualquer modificação na legislação que justifique essa mudança, isso vai de encontro aos princípios fundamentais da segurança jurídica, boa-fé, proteção da confiança, direito adquirido e irretroatividade. Portanto, o precedente substituído continua sendo um importante referencial, com efeito vinculante, em relação aos eventos ocorridos anteriormente.

CONCLUSÃO

O entendimento do STJ sobre a retroatividade da nova lei no uso da análise de contas no caso de abusos administrativos é de extrema importância para a comunidade jurídica e para a sociedade como um todo.

Com base em precedentes e decisões recentes, pode-se observar a tendência do Tribunal em não aplicar as disposições da nova lei retroativamente neste contexto particular. No entanto, é importante ressaltar que o assunto ainda está em discussão e o STJ poderá reavaliar sua posição caso surjam novos casos.

O acompanhamento aprofundado do andamento desse tema é fundamental para compreender o cenário atual do país para combater a má gestão e os possíveis danos.

REFERÊNCIAS:

Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mar-14/stj-favor-retroacao-lia-analise-contas

Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-dez-15/stj-discute-retroacao-lia-analise-contas

Disponível em https://www.migalhas.com.br/quentes/378788/stj-julga-retroatividade-da-lei-de-improbidade-em-analise-de-contas

Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-ago-18/stf-limita-retroatividade-lia-aos-casos-ainda-abertos

Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/voto-gilmar-lia.pdf

Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mai-09/uso-analise-contas-acao-improbidade-nao-retroage

Disponível em  https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm

Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14230.htm

STJ. AGRAVO DE RECURSO ESPECIAL: AREsp 2.031.414. Relator: Ministro GURGEL DE FARIA

MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 154/155.


[1] MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 154/155.

Estagiária em Direito no Martinelli & Guimarães Advocacia Contemporânea;
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná;
Membro do Núcleo de Direito Penal Econômico (NUPPE);

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