Em períodos de inflação crescente e instabilidade econômica, a compra de passagens aéreas se torna investimento de risco, submetendo-se a variações de preço súbitas e inconstantes. Nesse contexto, a insatisfação dos clientes em face das companhias e a consequente efervescência de debates judiciais nesta seara traz à tona algumas das temáticas centrais do Direito do Consumidor, merecendo destaque o tantas vezes mencionado “direito de arrependimento”.
O que é o direito de arrependimento?
Previsto no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, o direito de arrependimento consiste na prerrogativa concedida a qualquer consumidor que realize a aquisição de produtos ou serviços remotamente, garantindo-lhe o direito de desistir do contrato dentro do prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do recebimento do produto. Ainda, o dispositivo determina o direito de restituição integral do valor dispendido, monetariamente atualizado, de modo a evitar qualquer prejuízo ao consumidor.
Expoente dos preceitos básicos de proteção do consumidor enquanto parte hipossuficiente nas relações jurídicas e econômicas, a mencionada norma encontra guarida no microssistema em que se insere. Por este motivo, é amplamente aplicada pelos Tribunais pátrios a toda e qualquer aquisição realizada fora do estabelecimento comercial do fornecedor, inclusive no que concerne a compra de passagens aéreas, que se submetem a uma subsunção quase que automática e indistinta à prerrogativa consumerista.
Contudo, em que pese o entendimento jurisprudencial majoritário se oriente no sentido de garantir o direito de arrependimento na compra virtual de passagens aéreas, há de se notar que tal interpretação não se coaduna com a escorreita interpretação do sentido da norma, passando ao largo da mais técnica leitura do mens legis em questão.
A interpretação teleológica do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor
Na condição de uma ciência normativa, isto é, estruturada a partir de enunciados deontológicos direcionados a um fim, o direito em sua expressão legal deve ser lido não apenas em sua literalidade, mas sim a partir de seus propósitos político-jurídicos, compreendendo-se, em essência, seu sentido teleológico (MAXIMILIANO, 2011, p. 157).
Como estabelece a doutrina consumerista, o direito de arrependimento tem por fim compensar as limitações negociais e as reduzidas condições de avaliação do bem ou serviço adquirido pelo consumidor fora do estabelecimento comercial do fornecedor. Pensada em fins da década de 1980, a prerrogativa tinha em mente blindar o consumidor de mecanismos de venda mais agressivos, como os realizados por telefone ou em visita a domicílio, responsáveis por imprimir especial desequilíbrio na relação de consumo diante da impotência de negociação do adquirente (ALVIM et al, 1995, p. 243).
Ainda, Rizzatto Nunes leciona que o direito de arrependimento fornece garantias especiais nas aquisições à distância. A norma pretende simultaneamente (i) preservar os interesses do consumidor ao evitar compras impulsivas sob influência de publicidade incisiva e (ii) possibilitar ao consumidor estabelecer um juízo mais seguro acerca das qualidades do produto visto concretamente e de perto, o que resta impossibilitado com meras descrições disponibilizadas na comercialização à distância (NUNES, 2018, p. 486).
Estes mesmos propósitos são aventados pelos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor ao justificarem a inserção do direito de arrependimento no diploma. Como expõem os juristas, a previsão desta prerrogativa decorre imediatamente das peculiaridades que distinguem compras realizadas no estabelecimento físico do fornecedor de aquisições realizadas por meios remotos.
Esclarecem que, no estabelecimento físico, o consumidor com livre vontade busca o produto ou serviço, avalia alternativas, “faz cotação de preços, examina as especificações do produto pretendido, pesquisa as melhores bases para contratar, entre outros procedimentos acautelatórios” (GRINOVER et al, 2019, p. 769). Na compra à distância, ao contrário, os juristas reconhecem que o fornecedor assume uma abordagem de vendas mais agressiva, surpreendendo o ânimo de tranquilidade do consumidor de modo a explorar essa posição vulnerável, dificultando e escorreito discernimento e possibilitando contratações impulsivas. A isto soma-se o desconhecimento das efetivas qualidades e defeitos do produto, visto que a venda por catálogo impede esse contato mais próximo do objeto.
A partir desta leitura teleológica do direito de arrependimento, torna-se possível avaliar com melhor precisão técnica as hipóteses de aplicação do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor. Os próprios autores do anteprojeto afirmam expressamente que a aplicação do instituto não ocorre de forma automática e imediata a todas as relações de consumo à distância, mas o caso concreto, a partir dos usos e costumes a que se submete, é que vai determinar se a aquisição realizada fora do estabelecimento físico do fornecedor se sujeita ou não ao direito de arrependimento (GRINOVER et al, 2019, p. 770).
Nesse sentido, a redação escolhida para o dispositivo, ao destacar em rol exemplificativo as contratações a domicílio ou por telefone, não fez mera indicação desproposita, mas positivou no texto legal duas das hipóteses que melhor representam o cabimento do direito de arrependimento.
Tratando-se de meios populares de venda nos idos dos anos 80 e 90, a comercialização por telefone ou a domicílio, profundamente marcadas pela agressividade e pela falta de acesso às especificações no produto, foi gradativamente cedendo espaço à contratação pela internet que hoje representam a maioria esmagadora de casos em que se verifica a aplicação do direito de arrependimento pelos Tribunais.
Direito de arrependimento no mercado de aviação
Em que pese a incidência do artigo 49 ainda se mostre de extremo relevo em muitas das compras realizadas virtualmente, sobretudo na aquisição de produtos corpóreos e tangíveis, tem-se por certo que, em se tratando da aquisição de passagens aéreas, a aplicação da norma é de todo desprovida de sentido.
O mercado virtual de passagens aéreas não apresenta nenhuma das características que justificam a aplicação do direito de arrependimento.[GMTG1] [PG2] Sendo o comércio realizado em sítio eletrônico com divulgação publicitária dentro dos padrões de normalidade e que garante a possibilidade de se ponderar e comparar preços, bem como avaliar calmamente as oportunidades sem qualquer tipo de oferta ativa ou agressiva, não se verifica nenhum dos elementos que justifiquem a aplicação do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor.
Ainda, sendo a passagem aérea mero título representativo de contratação de serviço de transporte, todas as especificações de execução do serviço são disponibilizadas de modo analítico e detalhado no site das companhias. Inexiste qualidade ou defeito que pudesse ser mais bem avaliado no estabelecimento físico do fornecedor, de modo que a compra no balcão junto ao estabelecimento e a compra à distância pelo site da companhia não têm qualquer distinção que justifique a aplicação do direito de arrependimento na aquisição remota.
Eventuais instabilidades relativas ao serviço contratado, muito comuns no mercado de transporte aéreo, não justificam de modo algum a incidência do arrependimento, visto que tais instabilidades ocorrem após a contratação e não guardam qualquer relação com o fato de a aquisição se dar pessoalmente ou de modo virtual. A correção desta insegurança ao consumidor apenas pode se sustentar sobre instituto jurídico próprio e adequado, que clama por seu devido amparo legal, não se prestando para tanto a interpretação tergiversada do direito de arrependimento com a extrapolação moldes entregues pela legislação.
Tanto é dotada de ilogicidade a incidência do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor nesse tópico que a ANAC, por meio da Resolução nº400/2016, regulou de modo específico a matéria de arrependimento no âmbito do transporte aéreo. Indica o artigo 11 da Resolução que o usuário, sem qualquer ônus, pode desistir da passagem adquirida no prazo de 24h a contar do recebimento do comprovante, salvo se não for respeitada a antecedência mínima de 7 dias em relação à data do embarque.
A Resolução amplia as possibilidades de arrependimento para atender também às aquisições físicas de bilhete, dando maior homogeneidade e adequação ao exercício desse direito no mercado de aviação. Instado a se manifestar sobre a temática, o Tribunal de Contas da União se manifestou sobre a legalidade do instituto no Acórdão nº 1241/2018, reconhecendo a regularidade da previsão bem como sua natureza vantajosa ao consumidor.
Não há que se cogitar uma sobreposição de um regulamento administrativo sobre a legislação federal. Como se indicou acima, o direito de arrependimento previsto no Código de Defesa do Consumidor não oferece qualquer amparo aos clientes de companhias aéreas, visto que o serviço adquirido se encontra fora no âmbito teleológico de incidência da norma.
Mais do que uma restrição de direitos, a Resolução da ANAC surge como a garantia de um respaldo mínimo ao consumidor sem que com isso se exija a aplicação atécnica e precipitada da legislação consumerista. O que se busca com este entendimento não é um menosprezo pelas garantias e prerrogativas ofertadas aos consumidores, mas sim o respeito ao sentido preciso do texto legal, afastando a incidência do direito de arrependimento de casos que a ele não subsumem. Tal postura permite ainda uma regulamentação administrativa atenta e adaptada a cada nicho de mercado, capaz de oferecer amparos eficientes ao consumidor na ausência de lei federal aplicável ao tema.
Gradativamente torna-se possível encontrar novas decisões orientadas ao afastamento do artigo 49 do CDC na aquisição de passagens aéreas[1], o que indica uma readaptação ainda que tímida da jurisprudência à melhor leitura do dispositivo e à aplicação mais técnica e cuidadosa da legislação em vigor. Em respeito à legitimidade democrática do legislador, cabe ao judiciário avaliar os limites impostos pela norma vigente, adequando sua incidência aos casos em concreto sem que se incorra em excessos ou arbitrariedades que extrapolem o verdadeiro espírito do texto normativo. Dessa forma, a inaplicabilidade do direito de arrependimento à aquisição remota de passagens aéreas é entendimento necessário e alinhado com as verdadeiras disposições do direito consumerista.
Referências:
ALVIM, A; Alvim, T; Alvim, E. P. A; Souza, J. J. M. Código do Consumidor Comentado. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto: direito material e processo coletivo volume único. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 12ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
[1] APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. – COMPRA DE PASSAGEM AÉREA PELA INTERNET. REMARCAÇÃO PARA OUTRA DATA REALIZADA NO PRAZO DE 07 DIAS. MULTA APLICADA PELA COMPANHIA. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 49 DO CDC. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DO DISPOSITIVO. CONHECIMENTO PRÉVIO DE TODOS OS ELEMENTOS DO PRODUTO. SANÇÃO CONTRATUAL INFORMADA NO MOMENTO DA CONTRATAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO AO ARREPENDIMENTO. SANÇÃO CONTRATUAL NÃO VEDADA PELA LEI E AMPARADA EM RESOLUÇÃO DA ANAC. – INCIDÊNCIA DE HONORÁRIOS RECURSAIS. – RECURSO DE APELAÇÃO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.
(TJPR – 9ª C.Cível – 0014256-55.2018.8.16.0014 – Londrina – Rel.: JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU RAFAEL VIEIRA DE VASCONCELLOS PEDROSO – J. 08.08.2019)
Estagiário junto à Martinelli & Guimarães Advocacia Contemporânea. Acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Paraná. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) do curso de Direito da UFPR.
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