Muito tem se falado da incompatibilidade da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) com a Lei de Acesso à Informação (LAI) e dos reflexos negativos desse choque de normas. Não obstante o debate acerca do conflito entre a LGPD x LAI, circulou recentemente uma matéria da Folha de São Paulo de como a Lei de Proteção de Dados estaria sendo utilizada para se esquivar da transparência no Poder Público.
Em pleno ano eleitoral, essa preocupação atinge novas dimensões, inclusive pelo receio da utilização enviesada da LGPD para a ocultação de informações preciosas ao pleito eleitoral e o impacto disso em suas decisões.
Em que pese se vislumbre uma intensa propagação da tese que a LGPD estaria destruindo o esforço empregado ao longo dos últimos anos para a promoção da transparência no setor público, tendo se tornado a “ferramenta preferida” para que os entes ocultassem as suas atividades. Insta ressaltar, contudo, a inexistência de um antagonismo entre as normas, na mesma medida que se observa a falta uma atividade interpretativa da normativa de proteção de dados, alinhada com a má-fé e a utilização equivocada da Lei 13.709/18 pelo Poder Público para eximir-se da prestação de contas.
A transparência no Poder Público
Sabe-se que a relação jurídica estabelecida entre o Indivíduo e o Poder Público é marcado por uma evidente assimetria de poder, não apenas pelo poder de império inerente da atividade estatal na execução de seus deveres[1], como também pelo imenso banco de dados fomentado com informações particulares dos cidadãos ao longo de décadas, sob a premissa de “quanto mais informações, melhor” perpetuada na Administração Pública por meio de extensos formulários que coletavam esses dados.
Em que pese sempre tivesse existido o tratamento de informações pessoais no setor Público, a transparência no poder público possui lastro constitucional, uma vez que o Art. 37 da Constituição Federal já positivava a publicidade dos atos administrativos, tendo em vista que “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
Não obstante, a transparência no Poder Público representa uma característica essencial para a manutenção da democracia, de modo não ser possível conciliar os princípios democráticos em um modelo político que guarda espaço para segredo das atividades exercidas,[2] sendo somente por meio da informação que a liberdade democrática pode ser fazer concreta, possibilitando o livre desenvolvimento do indivíduo. [3]
Nesse sentido, tem-se que transparência e publicidade dos atos administrativos é de observância obrigatória por todos os entes da administração pública, tal como a sua aplicabilidade deve ser ampla, de modo que as omissões e incorreções que venham a ser detectadas são consideradas ilícitas pelo ordenamento jurídico.[4]
Lei de Acesso à Informação (LAI)
A Lei de Acesso a Informação (LAI), Lei n° 12.527/11, veio justamente para regular o princípio da publicidade e o acesso à informação previsto no texto constitucional (inciso XXXIII do art. 5º; inciso II do § 3º do art. 37 e § 2º do art. 216 da Constituição Federal). Materializando a transparência do poder público e os meios em que o cidadão alcançaria essas informações.
Precisamente em seu art. 6°, a LAI dispõe sobre o dever dos órgãos e entidades do poder público em assegurar a gestão transparente da informação, propiciando o amplo acesso a ela e sua divulgação, a promoção da proteção da informação, garantindo-se sua disponibilidade, autenticidade e integridade, como também a proteção da informação sigilosa e da informação pessoal, observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso.
Alinhado ao referido dispositivo, a LAI também tratou especificamente do tratamento de dados pessoais, em seu art. 31, dispondo que “O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais”. Observa-se, desde já, que a própria Lei de Acesso à Informação já trazia em seu escopo a proteção dos dados pessoais, ao mesmo passo em que garantia o acesso às informações necessárias para assegurar a transparência da gestão do setor público.
Além disso, a própria LAI introduziu o consentimento em relação ao tratamento de dados pessoais, em seu §3° do art. 31, trazendo já consigo, inclusive, as situações que configurariam exceções, conforme posteriormente viria ser disposto na LGPD.
Por fim, deve-se observar que a Lei de Acesso à Informação, no §4° do Art. 31, ao mesmo passo em que instituía a proteção de dados pessoais, visando a garantia e manutenção dos direitos e garantias fundamentais, também tratou de proteger transparência, uma vez que dispôs que “a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”.
Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)
Muito embora o receio de que a LGPD representaria um retrocesso aos avanços democráticos que envolvem a transparência no setor público tenha se expandido nos debates jurídicos. Deve-se ressaltar que a própria norma cuidou de amparar o princípio da publicidade no escopo de seus próprios princípios acerca do tratamento de dados pessoais.
Assim, a Lei 13.709/18, em seu art. 6°, dispôs que as atividades de tratamento de dados pessoais, além da boa-fé, da finalidade, da adequação e da necessidade, deverão observar a transparência, a segurança, o livre acesso, a qualidade dos dados e a responsabilização e prestação de contas, dentre outros princípios relativos ao tratamento de informações pessoais.
Não apenas a Lei de Proteção de Dados consagrou em seu escopo a aclamada transparência, ela também dedicou um capítulo inteiro a respeito do tratamento de dados pessoais pelo Poder Público, fazendo referência a LAI, no primeiro artigo do capítulo. Em continuidade, a LGPD, em seu Art. 25, que dispôs que: “os dados deverão ser mantidos em formato interoperável e estruturado para o uso compartilhado, com vistas à execução de políticas públicas, à prestação de serviços públicos, à descentralização da atividade pública e à disseminação e ao acesso das informações pelo público em geral.”
É possível perceber, com abundante clareza, que a LGPD não tem o condão de inviabilizar o tratamento de dados realizados pelo Poder Público, como tampouco enseja a criação de uma cortina de fumaça na transparência dos atos administrativos e a criação de algum conflito com a Lei de Acesso à Informação. Ao revés, enquanto a LAI se preocupa com a gestão transparente das instituições públicas, a LGPD buscar impor, em igual medida, a transparência do tratamento de dados pessoais realizado pelo Estado.
CONCLUSÃO
Resta evidente, portanto, a sintonia e complementaridade entre os dois dispositivos normativos. Ao passo em que a sua correlação se mostra propícia e proveitosa, não é possível, sob qualquer circunstância utilizar a LGPD como um obste ao desenvolvimento de mecanismos capazes de melhorar e garantir a transparência no Poder Público.
Da mesma forma que o manto constitucional sobre a proteção de dados não deixava de existir por falta de um dispositivo expresso, a sua consagração na Carta Magna Brasileira não deve representar um retrocesso democrático. Observa-se, contudo, o surgimento de um desafio aos entes públicos, em realizar o mapeamento dos dados pessoais tratados pela Administração Pública, e avaliar a finalidade, adequação e necessidade de cada um deles, tal qual é exigido pelos Controladores Privados.
Por fim, deve-se destacar que ambos instrumentos normativos consagram o princípio da transparência no exercício das atividades desenvolvidas pelo Poder público, representando, portanto, uma garantia ao indivíduo, cidadão, dos seus direitos fundamentais, como também do exercício de controle da atividade pública, representando uma busca pelo balanceamento da mencionada assimetria de poder que favorece o Poder Público.
[1] TASSO, Fernando Antonio. Do Tratamento de Dados Pessoais pelo Poder Público. In: MALDONADO, Viviane Nóbrega. BLUM, Renato Opice. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais comentada. 3ª edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 261/306.
[2] Bobbio, Norberto. O futuro da democracia (uma defesa das regras do jogo). Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
[3] MENDEL, Toby. The public right to know: principles of freedom of information legislation. Disponível em: https://www.access-info.org/wp-content/uploads/Article_19_principles_on_the_public_right_to_know.pdf
[4] GARCIA, Emerson. Publicidade institucional: a linha divisória entre o dever de informação e a promoção pessoal. In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 81, p. 155-166, jul./set. 2021. Disponível em: https://www.mprj.mp.br/documents/20184/2360635/Emerson+Garcia.pdf
Head de Privacidade e Proteção de Dados e Advogada do Consultivo no Martinelli & Guimarães Advocacia Contemporânea. Mestranda em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pós-graduanda em Direito Empresarial pela PUCRS. Mentorada do 8º ciclo de Mentorias do Women in Law Mentoring (WLM). Membro da Direitoria de Articulação do WICADE (WIA-CADE). Membro da Associação Norte-Nordeste de Direito Econômico (ANNDE). Pesquisadora do Laboratório Internacional de Investigação em Transjuridicidade (LABIRINT). Bacharela em Direito na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
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